Há exactamente 4 anos, a 10 de Junho de 2005, a agência Lusa publicou a notícia de um assalto massivo que aconteceu na praia de Carcavelos, envolvendo 500 jovens negros dos bairros degradados de Lisboa.
O facto inédito foi logo a notícia de abertura de todos os telejornais e a primeira página de todos os jornais do dia seguinte. Eventualmente, tomou proporções gigantescas, ao multiplicarem-se as notícias cada vez mais alarmistas, acabando por fazer até manchetes em serviços noticiosos estrangeiros, como a BBC.
Foi só uma semana depois que os factos foram apurados e o acontecimento começou a ser desmentido, e exposto como meramente uma enorme bola de neve em que cada notícia alimentava a seguinte, ao estilo "quem conta um conto acrescenta um ponto", com base num punhado de testemunhos que se revelaram contraditórios às versões de quem realmente lá esteve. Mas como é natural, embora a notícia sensacionalista tinha-se espalhado viralmente, já o seu esclarecimento, desconstruindo todo o mito de um arrastão que nunca existiu, não teve nem uma fracção do destaque da "notícia" original, deixando a sensação geral de insegurança e a incerteza sobre os acontecimentos no público. De facto, até hoje, ainda muitos portugueses acreditam que de facto se verificou um "arrastão" realizado por centenas de jovens negros provenientes de bairros degradados. Os desmentidos, realizados e divulgados, tiveram um efeito mínimo, não se verificando a reposição da verdade factual.
Eis os factos, para rigor histórico e análise:
* No dia 10 de Junho de 2005, sendo o final das aulas, e um feriado, uma grande quantidade de jovens negros deslocou-se para a praia de Carcavelos, usando como transporte os comboios da linha de Cascais; O número de pessoas foi estimado em cerca de 400 indivíduos. Porém, tal não aconteceu de forma súbita e organizada, mas sim gradualmente, em grupos dispersos, ao longo de toda a manhã. Note-se que se trata de algo perfeitamente normal para banhistas em pleno verão -- afirmações do relatório da própria PSP.
* Entretanto, por volta das 14h, um grupo de 30 a 40 jovens maioritariamente africanos, brasileiros e europeus do leste, tendo-se reunido em torno da bola da Nívea, um ponto de encontro que frequente usavam, começou a causar algum distúrbio, com música alta, correrias, danças, jogos de bola e outras actividades que perturbaram os banhistas na vizinhança.
* Esses distúrbios foram relatados fundamentalmente por uma única testemunha, que mantinha um café/bar nas proximidades. Notavelmente, este indivíduo tinha sido anteriormente agredido e evidenciava possuir preconceitos racistas.
* A irmã desse indivíduo telefonou à polícia, por ter "previsto" o que iria acontecer. 30 reforços policiais chegam à praia 20 minutos depois, coincidindo com um desentendimento entre um casal nesse grupo de jovens que gerou algum tumulto.
* Com informações erróneas sobre a dimensão e gravidade dos acontecimentos, a força policial aborda o grupo de jovens, que desata a correr pela praia, receando a intervenção policial.
* Numa reacção perfeitamente previsível, os banhistas igualmente fogem, muitos sem saber sequer de quê. Naturalmente, vários agarram nas suas coisas para não as deixar para trás
* Nessa altura, uma jornalista da Agência Lusa, que passava pelo local (em lazer) informou-se junto das forças policiais sobre o sucedido, tendo recolhido informações que vieram inicialmente a ser publicadas às 16:30, dando início a uma série de despachos, referindo-se sistematicamente a um assalto organizado de 500 jovens marginais oriundos dos bairros problemáticos de Lisboa.
* Todos os noticiários abrem com a notícia. No noticiário da SIC, pela primeira vez é usado o termo "arrastão", que daí propaga-se vindo a ser usado em todos os meios de comunicação. As comparações com os arrastões do Rio de Janeiro, no Brasil, são frequentes (é de notar que nem no Brasil os arrastões tomam proporções de 500 pessoas).
* Fotografias usadas nos telejornais são descritas como indicando a violência dos assaltos; na verdade apenas mostravam pessoas em fuga, incluindo jovens negros não só do grupo onde se iniciaram o distúrbios, mas também outros banhistas, adolescentes e jovens negros, que apenas fugiam com os próprios haveres.
* Mesmo que na confusão tivesse havido assaltos espontâneos, houve apenas uma queixa de assalto confirmada em Carcavelos, e nem se passou na praia mas sim na estação de comboios, e num horário totalmente diferente. As únicas ocorrências de pessoas feridas foram de uma mulher que se feriu num pé numa garrafa partida, e de uma pessoa atingida por engano com um bastão da polícia.
* No dia seguinte, a notícia é manchete de todos os jornais. títulos sensacionalistas, envolvendo termos como "pânico", "caos", "centenas de vândalos", "terror", entre outros. Tudo isto, ignorando as declarações do Comandante da PSP, que desde o dia anterior tentava desmentir as notícias alarmistas.
* A BBC News, a BBC Brasil, a Euronews, a CNN, e vários canais de televisão franceses, belgas, holandeses, italianos, alemães e luxemburgueses ecoam a notícia já divulgada nos meios de comunicação nacionais. Durante vários dias, os media portugueses vivem uma febre do "arrastão".
-------------------------------------------------------------
Apenas vários dias após as primeiras comunicações, os media começaram a corrigir os factos; o mal estava feito, porém: toda a população tinha sido convencida de que realmente houve um arrastão nesse dia. As peças noticiosas de correcção tiveram notoriamente menos exposição e muitos nem sequer chegaram a saber que o evento tão alardeado não chegou na verdade a acontecer.
O vídeo "Era uma vez um arrastão", por Diana Andringa, foi uma das muitas tentativas de revelar a verdade do que se tinha (ou não) passado; provavelmente foi a mais bem-conseguida de todas, sem no entanto ter tido o poder de desfazer o receio racista e o estigma que entretanto se espalhara e que a cada dia atinge a população negra em Portugal.
Parte 1: http://www.youtube.com/watch?v=9pfS50Ycguw
Parte 2: http://www.youtube.com/watch?v=krHE6BpRK5g
Parte 3: http://www.youtube.com/watch?v=O-0UFPJi5tA
Parte 4: http://www.youtube.com/watch?v=gCZ1KmlqgqU
Uma colectânea de documentos foi publicada no livro "O Pseudo-Arrastão de Carcavelos", pela ACIME (Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas*), e está também acessível online, em http://www.acidi.gov.pt/docs/Publicacoes/ARRASTAO.pdf
* actualmente Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário